Durante muito tempo me ocupei com uma questão insolúvel: por que latem tanto os cães do Jardim das Américas?

Eu morava naquele bairro sossegado e quieto que ao final da tarde lembra uma fazenda bucólica. Silêncio, canto de pássaros que se preparam para dormir, algum som de conversa que se escuta ao longe. Mesmo assim, caindo a noite, os cães latem sem parar. Digamos que parem durante certos momentos, diminuindo a produção de latidos em volume e frequência, mas latem com regularidade canina. E, como são muitos os cães, os latidos não cessam.

Há aqueles que latem forte, em reclamações poderosas e cheias de fúria. Parecem se jogar contra as grades do portão, a tela do canil. A julgar pelo escândalo que fazem, lutam com algum invasor e estão correndo sérios riscos. Mas acho que não são levados a sério, pois, tendo latidos tão fortes e tamanha fúria, devem ser cães poderosos, que não carecem de ajuda.

Outros cães latem de forma estridente, latidos agudos, estalados, metálicos – vozes de soprano. Estes latidos explodem em nossos ouvidos, ecoando longe. Típico de cães pequenos, pois, quanto menor, mais barulhento e metido a valentão é o cachorro. Os baixinhos humanos costumam confirmar essa regra. Fazem um alarde histérico e, após começarem, nada os detém. Latem por horas.

E assim ficamos. Na direção Norte está um pequeno cão que late sem parar há mais de quinze minutos. Faz apenas algumas paradas estratégicas. Imagino que vá tomar água para limpar a garganta, fazer um gargarejo, e, quando já me acostumo ao silêncio, ele recomeça.

E, de um momento para outro, todos voltam a latir.

É inútil tentar entender por que latem os cães. Somos seres de outra espécie, jamais saberemos. Eles, por seu lado, devem pensar lá com suas categorias caninas, com juízos de valor baseados em sua capacidade olfativa, que também não entendem os homens. Andam de um lado para outro, entram em automóveis, buzinam, gritam com as crianças, batem as portas, passam o dia inteiro diante da televisão ou segurando junto à orelha um aparelho através do qual falam, falam, falam.

Portanto, não tentemos entender os cães – eles também não nos entendem. Estamos quites. Aqueles que não tentam se entender, não se desentendem.

O fato é que, no conjunto, eles tecem uma sintonia de latidos. É possível distinguir uns e outros, tentar adivinhar a raça de alguns deles, a sua ferocidade relativa, o espalhafato de que são capazes.

Mas um deles me preocupa. Agora que todos pararam de latir, fico esperando para ouvi-lo, distante, na direção Leste. Deve ser um cão muito sofredor. O que produz como parte da sinfonia geral nem chega a ser latido. É um rosnar profundo, doloroso. Uma reclamação surda, imóvel, inconformada com a própria paralisia. Deve ser um cão de grande porte. Deve ter um ar cansado e olhos caídos. Imagino que esteja trancafiado num canil minúsculo. Quando cansa de rosnar, uiva por detrás dos latidos de sopranos e de tenores dos outros cães, enchendo o fundo da noite com toda a dor de que um cão é capaz. Lembra um contrabaixo sinistro, conduzindo a música rumo a uma catástrofe.

Mas não vou ser injusto. Há um momento em que se calam. Agora, por exemplo. Posso ouvir o som dos carros, o pio dos pássaros, sem qualquer intervenção dos latidos dos cães. Fico me divertindo com o silêncio, ainda sem sono e sem paciência de me jogar na cama.

É quando descubro que o silêncio dos cães talvez seja coisa pior do que a arruaça sonora que produzem. A noite, que a insônia me obriga a acompanhar aqui desta janela, se revela ainda mais tensa. Este silêncio é ainda pior do que os latidos. Pesa toneladas. Uma ameaça surda e desesperada.

Mas, súbito, estou salvo. Eles voltam a latir. A sinfonia ocupa os ares do bairro novamente. Não estamos sozinhos. Os cães zelam por nós seja lá qual for o perigo que esteja nos rondando.

Roberto Gomes

www.gomesroberto.blogspot.com

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Publicado no Aeroporto Jornal – abril/2016


Foto: Victor Grabarczyk/ Unsplash

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