AS PALAVRAS CORREM O MUNDO, FALADAS OU ESCRITAS. Há aquelas que são passageiras como o vento – batem asas e se vão. Há outras que estacionam nas conversas e, de tanto se repetirem, tornam-se cacoetes irritantes. Enfim, tal como os seres humanos, palavras são boas ou más dependendo de seu uso, oportunidade e senso do ridículo. Não são seres divinos.

O jornal O Pasquim colocou em circulação, no final dos anos 1960, uma dessas palavrinhas que tinha o poder de estabelecer parâmetros na conversa e deixar claro de que lado se estava e o que se pensava. Tratava-se do pontual “seguinte:”, assim mesmo, acompanhado de dois pontos. Vivíamos uma época em que era preciso estabelecer limites e clareiras entre os discursos que circulavam militarmente por aí, sendo também um pedido de direito à palavra.

Era uma época complicada.

Hoje há em circulação uma palavrinha-síntese da qual, devo confessar, não gosto muito. Trata-se do “entendo”. Todas as conversas são pontuadas por sucessivos “entendo”. Quando meu filho começou a usar essa expressão, confesso que levei um susto. De início me pareceu uma expressão demasiado dura e seca. Parece significar que já se entendeu tudo, ponto final. Conversando com meu filho e seus amigos, meu susto aumentou. A todo momento pintava um “entendo” na conversa e eu pensava: essa geração diz que entende; eu, com algumas décadas a mais nas costas, ainda não entendi nada.

Temos, assim, uma geração cheia de certezas que evita questionamentos mais refinados. E uma geração, ai de nós!, que cultivou a hesitação e a dúvida – e que até hoje não entendeu nada.

Há outras palavras que parecem sintetizar uma quantidade grande de pensamento, mas é só aparência. Me refiro ao termo afrodescendente.

Evitando complicar, diria que para pensar são necessários conceitos. De alguma maneira a filosofia não é mais do que a busca e o burilamento de conceitos, desde os pré-socráticos até Deleuze.

Ocorre que afrodescendentes é um não-conceito. É apenas noção descritiva.  Existem afrodescendentes, como meu filho, com pele claríssima, cabelos castanhos claros e crespos. Ocorre que meu bisavô era negro, donde eu e meus filhos sermos afrodescendentes. Mas os avós maternos de meu filho são italianos.

Desta forma, sendo noção descritiva nada tem de conceitual e que possa sustentar qualquer argumento inteligente.

E a razão é simples. Tal uso se baseia numa concepção racial do ser humano, sendo que raça é noção que foi abandonada por todos os cientistas sérios ao longo do século XX. Só os nazifascistas a levam a sério. E pensamento se faz com conceitos ou não se faz.

O que prova haver abuso da palavra é que o termo afrodescendente não estabelece parâmetros para nada. Foi o caso dos gêmeos ocorrido na seleção de alunos para ocupar cotas nas universidades. Um deles foi aceito como afrodescendente, e o outro, não. O grande argumento “científico” usado pela banca julgadora foi a cor da pele. De fato, um era mais claro. Como se vê, uma tolice.

A cor da pele não é conceito explicativo de absolutamente nada.

Roberto Gomes, escritor e colunista da Now Boarding

Publicado na Now Boarding – fevereiro/2019

Imagem: Clker-Free-Vector-Images/Pixabay

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