A atriz que interpreta a personagem Djamila, na telenoavela Jikulumessu (TV Brasil), Heloísa Jorge, transpira o intercâmbio cultural entre Brasil e Angola.
Heloísa Jorge nasceu em 1984, na vila angolana de Chitato e vivenciou a Guerra Civil Angolana até se refugiar no Brasil aos 12 anos. Junto ao pai passou a adolescência em Montes Claros, Minas Gerais. Sobre as semelhanças entre os seus dois países, ela é pontual: ”O que mais aproxima brasileiros e angolanos é a alegria.”
Após completar o ensino médio, mudou-se para Salvador, onde cursou Artes Cênicas. Migrou do teatro à televisão e um dos trabalhos foi a telenovela Gabriela, com a personagem Fabiana. Também brilhou na peça teatral Race, texto de David Mamet dirigido por Gustavo Paso, como Susan: “uma advogada idealista recebe o caso de um homem branco e rico acusado de estuprar uma jovem negra”.
Encenar as lutas diárias e reais da mulher negra é uma contribuição que Heloísa nos traz. Ela interpreta papeis de relevância social e artística com profissionalismo. “Prefiro os bons desafios e me sinto mal fazendo mais do mesmo”, afirma. A trajetória desta atriz é, por si só, uma trama digna da dramaturgia.
NOW BOARDING: Você tem no currículo personagens que dialogam entre Brasil e Angola. Como é trazer a identidade cultural africana à arte brasileira?
Heloísa: É maravilhoso ter a oportunidade de “ser” duas culturas totalmente diferentes também no trabalho. Ser angolana e também brasileira, essa “indefinição” deixou de ser um problema quando entendi que posso ser os dois e ter conforto nisso. Hoje, sou tranquila e resolvida em relação à dupla cidadania. Nasci em Angola, minha mãe é angolana e meu pai é brasileiro e isso é maravilhoso, um privilégio!
Passei por duas experiências como atriz que tinham como pré-requisito essa minha identidade. Uma em 2014, quando protagonizei a novela angolana Jikulumessu (atualmente no ar aqui pela TV Brasil). Precisavam que a personagem, uma angolana que também viveu no Brasil, conseguisse reproduzir com naturalidade o sotaque português brasileiro. A outra foi este ano, na novela A Lei do Amor com a personagem Laura, que falava com sotaque português angolano. Tenho carinho pelas duas personagens. De alguma forma homenageiam o que sou e representam o trânsito entre as duas culturas.
NB: Como foi passar por uma guerra civil?
Heloísa: Ter nascido e vivido esta experiência em Angola contribuiu para formar o que sou. Só fui refletir sobre a questão quando deixei minha mãe e irmãos para viver com o meu pai no Brasil. Viemos na condição de refugiados. Eu era criança e não tinha consciência da gravidade da situação de Angola. A guerra fazia parte da realidade e naturalizamos aquilo. É claro que tínhamos limitações, inclusive de comida. Estávamos sempre em mudança, vi mutilados. Mas a minha mãe, que foi uma mulher inacreditável fez de tudo para que tivéssemos uma infância bonita: tive amigos, estudei, tive uma educação rígida, brincava e cuidava dos meus irmãos.
NB: Qual é a importância da discussão sobre a mulher negra brasileira?
Heloísa: Apesar dos retrocessos na política brasileira, vivemos um momento positivo que é a contundência na discussão sobre questões que, por muito tempo, silenciaram muita gente. Seja pela articulação dos movimentos sociais ou individualmente, questões como o racismo estrutural refletem diretamente na invisibilidade da nossa população negra (somos mais da metade da população), na falta de representatividade nos veículos de comunicação, nos cargos de chefia e de capital simbólico, na hiperssexualização do homem e da mulher negra, na morte dos jovens negros. A lista é grande!
O fato é que estamos conversando sobre isso e colocando as cartas na mesa, tomando partido. Entendemos que falar em meritocracia é um erro, já que historicamente as oportunidades não são iguais, estamos questionando os privilégios, identificando opressores, questionando um sistema que não nos contempla mais.
NB: De que maneira o seu trabalho vem contribuindo para desmistificar a imagem que ainda se tem do continente africano?
Heloísa: Não sei se consigo fazer muito para desmistificar a imagem que as pessoas ainda têm do continente africano. Sou jovem e essa construção é histórica. Acho que não gostaria de ter a responsabilidade de ser vista como embaixadora disso, porque é uma carga pesada. Mas não nego que ter alguns trabalhos na televisão aqui no Brasil têm gerado visibilidade e curiosidade das pessoas sobre a minha história. Sempre que há possibilidade, procuro trazer uma outra versão do que é pensado sobre África, a partir do recorte das minhas vivências em Angola.
NB: E o seu trabalho atual?
Heloísa: Estou entre as filmagens do longa-metragem Bate Coração, do Glauber Paiva Filho. Faço a personagem Claudia, uma médica workaholic de vida afetiva frustrada. Estou bem feliz com este projeto e em estar fazendo cinema, uma linguagem que amo mas que experimentei pouco.
Publicado na Now Boarding – setembro/2017