HÁ QUEM TENHA SAUDADE DOS TEMPOS DA INFÂNCIA, DOS QUITUTES DA VOVÓ OU DA PRIMEIRA IDA AO CINEMA. Mas há também saudades de coisas físicas que, com o tempero do tempo, se transformam em coisas metafísicas. O álbum de figurinhas, a bola de futebol que meu pai me deu imaginando alimentar o talento de um futuro craque.

Minha mãe era uma senhora hábil em coar o melhor café, além de criar um surpreendente pudim de leite moça. Até hoje não resisto. Um tanto pelo sabor e outro tanto para anunciar, ao termino da degustação, que minha mãe faria melhor. Era imbatível.

Mas a saudade da qual eu queria falar não era nem de coisas, nem de comidas, nem mesmo da vizinha chamada Marlene, professora de educação física. Aliás, tinha uma educação física notável. Moleque ainda, eu me pendurava na cerca e puxava conversa enquanto ela levantava uns pesos, corria e dava uns pulinhos cheios de graça. Um espetáculo.

O que me fez suspirar um profundo “ai, que saudade!” foi o reencontro com um livro que está comigo há muitos anos e, numa arrumação que estou fazendo, me caiu nas mãos.

O autor é Sérgio Porto, que se tornou mais conhecido pelo pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, sendo o compositor da notável marcha-rancho “O samba do Crioulo Doido”, sátira genial que tira sarro ao mesmo tempo dos temas e das letras dos sambas enredo e do estado de choque cultural em que se encontrava o Brasil em 1968, plena ditadura militar. Era um estado de confusão analfabética, digamos assim.

Aliás, um momento cultural semelhante ao que atualmente sofremos.

O livro é uma reunião de crônicas, misto de sátira e humor refinado, e leva o título de Garoto Linha Dura. Não é o melhor livro de Sérgio Porto. Ele escreveu outros, entre eles As Cariocas, reunindo seis novelas que mostram que não tinha apenas facilidade para criar textos de humor, sendo também um escritor de alta qualidade. O livro que o consagrou foi O Festival de Besteiras que Assola o País. Podemos imaginar como se divertiria tivesse à disposição o Brasil atual.

Não produziu um grande romance por ter perdido a vida ainda jovem, aos 45 anos, naquele fatídico 1968, fulminado por um ataque de coração.

O Garoto Linha Dura é o retrato de um tirano quando jovem: autoritário, aproveitador, um pequeno canalha. Um tipo violento e dedo duro capaz de atribuir aos seus coleguinhas de rua traquinagens que ele cometia.

Pois certa vez Sérgio trabalhava, debruçado sobre a máquina de escrever, quando, súbito, deu um pulo e correu até à janela. Gritou:

– Aí, careca!

O careca rodopiou, desconcertado, lá na calçada, e devolveu uma banana para ele, que voltou de imediato à máquina de escrever, no rosto o sorriso de quem havia cometido uma deliciosa molecagem.

Eis onde eu queria chegar. O Brasil perdeu o humor, perdeu o brilho e a graça. Já não podemos fingir que somos um povo alegre, capaz de fazer piada de tudo. Azedamos. Temos olhos em fúria. O dedo duro na cara do adversário. Um povo triste.

Em 1968, mesmo sob o choque da ditadura militar, sabíamos satirizar e sorrir. Hoje nem sabemos no limiar do que estamos. Todos querem vingança, custe o que custar.

Roberto Gomes, escritor

Publicado na Now Boarding – novembro/2018

Foto: congerdesign/Pixabay

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