NÃO O LIVRO DO PROFESSOR CHATO QUE VEM COM QUESTIONÁRIOS. Nem o livro da bibliotecária estrábica no qual não se pode tocar.

Mas o livro companheiro, disponível, tão amável quanto um radinho de pilha. Estará sobre a mesa, jogado no sofá, esquecido no banheiro. Jamais alardeando as proezas das quais é capaz. Não carece da instalação de um programa para que funcione, exceto, é claro, os neurônios e as memórias do leitor.

Ao contrário dos computadores, que só há pouco foram transformados em portáteis, o livro sempre teve esta virtude: a portabilidade, podendo ser levado de um lado para outro sem fios ou conexões.

Tive um amigo poeta que era famoso pela boemia, pelos olhos sonolentos e pobreza extrema. Um dia, numa emergência, foi preciso descobrir onde se metera. A cidade foi virada de pernas para o ar, telefonemas foram disparados para todos os cantos, já pensávamos em avisar à polícia. Foi quando uma mocinha, uma das musas do poeta, nos explicou que ele, como fazia nos finais de semana, estava num dos bordéis da cidade, a Boate Tabu. Lá foi encontrado deitado numa cama descomunal, nu e de pernas cruzadas, ladeado por duas prostitutas para quem lia poemas de Manuel Bandeira.

O poeta foi retirado de seu refúgio sob protestos das duas moçoilas, às quais prometeu voltar para ler poemas de Jorge de Lima.

– Jorge de Lima? – estranhamos.

– Claro – explicou ele, inabalável. – Estas moças são muito religiosas.

Era o caso do casto e místico padre Junípero, um franciscano conhecido como santo ainda em vida. Gastava tardes inteiras lendo livros a passear pelo pátio do internato, tartamudeando o que lia com seus lábios grossos, acompanhando as frases com sutis movimentos de sobrancelhas. Lia a Bíblia, o breviário, a vida dos santos e ia pelos corredores e pátios do colégio desviando de colunas, de pedras, de estudantes em correria, sem tirar os olhos das páginas. Aparentemente alheio a tudo. Aparentemente, pois não era raro que, sem interromper a leitura, chamasse a atenção de algum aluno, mandando que tirasse o dedo do nariz.

Ou seja, o santo Junípero era multitarefa por conta dos livros que lia.

Mas o livro respeita nossas vontades. Minha amiga Verônica Toledo, por exemplo, disse certa vez estar lendo um livro meu numa ordem aparentemente caótica: lia o primeiro capítulo e, em seguida, o último. Depois, o segundo e o ante-penúltimo – e assim por diante. E me dizia:

– Não é que dá certo?!

Livro é democrático, flexível, multitarefa, permite voltar páginas, avançar quantas se queira, aceita rabiscos nas margens, orelhas de burro marcando páginas, cabe na bolsa e às vezes no bolso. Acompanha nossas andanças, não apresenta falha geral de sistema, não carece ser reiniciado mas apenas reaberto. Não depende de energia elétrica e não precisamos renovar sua licença anualmente ou comprar uma versão 1.2 quando sai nova edição.

Enfim, agrada ao poeta nu e lúbrico, ao santo frade Junípero, às distantes prostitutas da boate Tabu, que hoje serão senhoras respeitáveis, destas avozinhas de calendário piedoso, que ainda se lembram daquele poeta que passava as tardes pelado em suas camas a ler versos. Aprendemos tanto com ele, dirão elas, suspirando diante dos netinhos.

Roberto Gomes, escritor

Publicado na Now Boarding – abril/2019

Imagem: cromaconceptovisual / Pixabay

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