Roberto Gomes, escritor
FAZIA MEIA HORA QUE ELA ESTAVA DE OLHOS ARREGALADOS, FIXOS NO TETO DO QUARTO. DE REPENTE DEU UM PULO E SE AGARROU AO OMBRO DO MARIDO:
– Leontino!
O marido acordou atordoado.
– Que foi mulher?!
– Você está ouvindo?
– Ouvindo o quê?
– Esse barulho.
– É secador de cabelo, mulher.
– Claro que é secador de cabelo, Leontino.
– E daí? Quer dizer que o vizinho aí de cima está secando o cabelo.
– Mas isso está esquisito. Onde já se viu, quinze para as duas da manhã e o sujeito secando o cabelo!
– Meu deus do céu, mulher! Me deixe em paz. Quero dormir.
Ele cobriu a cabeça com o travesseiro. Mas ela continuou atenta.
– Leontino! Desligaram o secador.
Ele rosnou, mordendo o travesseiro:
– Se desligou o secador é por que acabou de secar o cabelo. Então, vamos dormir. Não me encha mais a paciência.
– Mas como é que eu posso dormir? Leontino! Leontino! Acorda aí!
– Por quê?
– A gente não sabe o que está acontecendo aí nesse apartamento de cima.
– Mas o que pode ser?
– Eu acho que hoje é o dia em que ele traz a namorada para o apartamento.
– Namorada? Que namorada?
– Você não sabe que ele tem namorada?
– Não. Não sei.
– Leontino, se você visse… Essa namorada não é boa bisca.
– Escuta aqui, Juventina, isso é problema dele. E que história é essa de você falar em “bisca”? Logo você que frequenta encontros na igreja.
– Tá, vendo? Deve ser influência da vizinhança. Só isso explica o que eu tenha usado essa palavra. Más influências.
– Escuta. Eu quero dormir. O sujeito já secou o cabelo. Não sabemos se a namorada está lá. O que não é da nossa conta. Portanto, não me chateie, Juventina. Vá dormir, Juventina!
– Mas como posso dormir com um problema desses sobre nossas cabeças?
– Mas que problema?
– Que tal se ele está lá com a namorada?
– Pode ser. E daí?
– Podem estar fazendo alguma coisa.
– O que ele pode estar fazendo com a namorada? Você já esqueceu?
– Não, eu não esqueci. Você é que anda esquecido. Quem sabe por isso…
– Faça-me um favor!
– Está bem, Leontino. Vou dormir.
Ele virou para o lado, se enrolou feito um caracol. Ela virou para lado oposto, montou outro caracol abraçada ao travesseiro. Não levou quinze minutos.
– Você ouviu, Leontino? Esse barulho. Uma faca caiu no chão!
Ele sentou-se na cama, colocou o travesseiro entre as pernas e o esmurrou a cada sílaba do que dizia:
– E o que nós temos com isso?
– Você não percebe, Leontino?
– Não percebo o quê?
– Crime.
– Que crime?
– Ora, com faca são cometidos crimes.
– Não encha. No máximo ele vai descascar uma laranja.
– Às duas da madrugada?
– Claro. Crimes são cometidos à meia noite. Já passou da hora. Durma bem.
Ele enroscou-se em novo caracol. Silêncio. Passou meia hora. Súbito, do apartamento de cima veio uma gargalhada, duas gargalhadas, uma sucessão de gargalhadas e de gritos.
– Leo?! Leozinho! Você tá acordado?
– Estou, Juju. Você não me deixa dormir.
Ela deu uma risadinha:
– Estou lembrando de umas coisas, Leozinho.
– Eu também, Jujuzinha.Os dois enroscaram-se num só caracol e assim reinou a paz no condomínio.
Publicado na Now Boarding – novembro/2017