ELE ERA UM MENINO, SETE ANOS. Mas talvez os hormônios em seu corpo de criança não soubessem disso ou se desgovernassem segundo outro calendário, contando o tempo em saltos triplos.

O certo é que ele ficava de plantão, ouvidos atentos, pois sabia que ela costumava sair de casa depois do almoço. Ela. Dezessete anos. Ao menor ruído, ele abria a porta cuidando para que tudo parecesse uma enorme coincidência.

Puxava uma banqueta e ficava de tocaia. Era preciso paciência, pensava em sua cabeça de menino. Para passar o tempo, tirou do bolso um saquinho no qual guardava as bolinhas de gude – que ele chamava de clicas – e fez uma inspeção demorada para ver se estavam todas em ordem. No meio da tarde iria jogar com amigos que chegavam da escola. Examinou a clica atiradeira, precisa e fatal, cheia de si. E uma das preferidas, que misturava tons de marrom com vermelho. Gostava dessa, era… deu um salto: a porta!

Desceu da banqueta e se atirou na direção da porta, que abriu sem o devido cuidado. Resultado: as clicas despencaram do saquinho e se espalharam pelo chão, uma delas saltitando escada abaixo.

– Oi, disse ela, o que houve?

Ele apenas abriu a boca. Disparou a catar as clicas, enquanto repetia:

– Nada, nada.

Desceu um lance de degraus para apanhar a mais fujona.

– Qualquer dia você cai dessa escada, menino. Cuidado, disse ela.

– Caio não.

Não gostou de ser chamado de menino. O vestido dela era branco – e era só o que ele via. No mais, o rosto mais belo do mundo, olhos verdes e sorriso alegre.

– Com licença?

Ela passou por ele, que se afastou. Sentiu o seu perfume, que parecia misturar marrom e vermelho.

Dois degraus abaixo, ela se virou:

– Não vai sair para jogar clica?

– Mais tarde, respondeu.

Pensou: burro! A pergunta dela era quase um convite para que descessem a escada juntos.

Ele gaguejou:

– Vo…vou sim.

Ela sorriu o sorriso mais lindo do mundo:

– Então venha.

Desceram a escada, os degraus de madeira negra a gemer a cada passo que davam. Parecia música.

Ele saltava os degraus guiado pelo perfume. Empinava o nariz para sentir melhor. Como era linda, pensava. Como era suave aquele perfume. E a voz? Fazendo um esforço enorme em sua cabeça de menino, pensou em dizer alguma coisa, mas só conseguiu perguntar:

– Será que chove?

Ela sorriu:

– Não se preocupe. Só chove à noite.

– Também acho, disse ele, pensando que ela era mesmo uma princesa.

Chegaram ao térreo. Ela perguntou se ia jogar clica.

– Ainda não. Meu amigo não chegou.

– Você joga bem?

– Pouco, sacudiu os ombros.

Ela abaixou-se para pegar a clica que ele mostrava, a tal marrom com tons de vermelho, e ele mergulhou os olhos em seu colo rosado. Estava certo que era dali que vinha o perfume.

– Bonita clica.

Foi quando estacionou junto à calçada um imenso conversível. Ela acenou e entrou no carro. Ele controlou seu ódio de menino. Sentiu vontade de socar a cabeça daquele tipo que interrompera a conversa deles, o patife.

O conversível sumiu e o menino pensou que precisava achar um estojo para a clica marrom com tons de vermelho. Ela a pegara nas mãos e dissera que era bonita. Decidiu que para sempre guardaria aquela clica como um troféu.

Suspirou e, aos pulos, de três em três degraus, subiu a escada.

Roberto Gomes, escritor

Publicado na Now Boarding – maio/2019

Imagem: himanshu gunarathna/Pixabay

 

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