Marcada pelo instantâneo, a sociedade moderna traz consigo a necessidade de que nos lancemos apressadamente na rotina, dia após dia. Desta forma, às vezes não notamos as nuances do caminho, sorrimos pouco, respiramos mal. Mas ainda temos chance: esse fôlego e bom humor meio apagados no homem moderno sobram em narrativas como a do húngaro Dezsö Kosztolányi, autor do livro de contos “O Tradutor Cleptomaníaco”, da Editora 34. Misto de ceticismo e ironia, a obra demonstra a genialidade do escritor, consagrado em toda a Europa desde a década de 1920.
Com treze contos curtos e imprevisíveis, “O Tradutor Cleptomaníaco e outras histórias de Kornél Esti” possibilita ao leitor que enxergue episódios banais por uma perspectiva inesperada, beirando o absurdo. Afinal, a insólita narrativa que abre o livro, homônima ao título, apresenta um personagem que, acreditem, rouba seus próprios companheiros de trama: surrupia janelas imaginárias, portas inexistentes, abre carteiras alheias etc. Noutra história, “O salva-vidas”, um herói é transformado num preguiçoso. A gratidão pode acabar em assassinato. E assim sucessivamente.
Sendo verdade o que defendia Dezsö Kosztolányi: “só o inverossímil é realmente verossímil, só o inacreditável é realmente acreditado”, sabemos estar diante de um livro, de fato, inacreditável. Apesar de “inverossímil”, é de uma realidade muito saborosa. Para o leitor apressado resta, enfim, um alerta: não deixe que as tarefas urgentes – geralmente cleptomaníacas – roubem uma vírgula sequer dessa obra-prima da literatura. R$ 42
Amanda Chain
Outras leituras na editoria Leitura de viagem
Publicado no Aeroporto Jornal – novembro/2016