Ao mesmo tempo em que o mundo faz campanhas de vacinação, o surgimento de variantes do coronavírus Sars-CoV-2, a Covid-19, potencialmente mais transmissíveis preocupa os cientistas. Apesar de estudos ainda estarem em andamento, há o temor de que elas diminuam a eficácia dos imunizantes já autorizados. Detectada e notificada pela primeira vez no Japão, no início de janeiro deste ano, a variante brasileira ou amazonense, chamada P.1, ainda foi pouco estudada. Segundo o Ministério da Saúde nacional, há mais de 200 casos da registrados no país, incluindo algumas reinfecções – em 17 estados brasileiros.
No mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), quase 30 países já detectaram a nova variante. A infectologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Nancy Bellei, que tem mestrado e doutorado em doenças infecciosas e parasitárias, explica à Ansa que há diferenças entre as mutações das variantes brasileira e sul-africana e as daquela britânica.
“A cepa do Reino Unido, que já dominou vários países, tem uma mutação específica na região da proteína spike do vírus [receptor-blinding domand]. Essa é a região principal da ligação do vírus com a célula e para a qual nós fazemos anticorpos imunizantes”, diz Bellei, destacando que a alteração determina uma “falta de aminoácidos” nessa porção do Sars-CoV-2.
A proteína spike, ou espícula, é a “chave” com a qual o vírus entra nas células humanas, e essa mutação, que ganhou o apelido de Nelly (N501Y), é encontrada nas três variantes. “A cepa sul-africana tem várias mutações, uma delas na região receptor-blinding domand, que é a E484K. A P.1. também tem várias mutações, e uma delas também é a E484K, que a gente chama de Erik”, acrescenta.
O virologista José Eduardo Levi, pesquisador do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP), destaca à Ansa que as variantes sul-africana e brasileira “são bem parecidas” e estão “mais distantes” da cepa britânica.
“Cada variante é diferente uma da outra pelas mutações, e é isso que define uma variante. E a variante P.1 tem mutações em uma região do vírus que sempre preocupa mais os cientistas, que é nessa parte que chamamos de spike”, pontua.
Segundo Levi, as alterações nos vírus podem ser de três tipos: neutras, que não melhoram nem pioram a vida dele; prejudiciais, que fazem com que a variante acabe desaparecendo; ou que podem melhorar, o que, na prática, significa uma maior capacidade de infecção e uma maior taxa de transmissão.
“As variantes sul-africana e a P.1 têm outra modificação associada com o escape da resposta imune, então elas já são piores no sentido de ser mais transmissíveis e competentes na capacidade de escape à resposta imune, por exemplo, sendo capazes de reinfectar quem teve Covid uma vez”, diz.
Bellei ainda destaca que uma pergunta não respondida é por que o vírus ficou tanto tempo com uma mutação ocorrida na Europa a partir da cepa original, sequenciada em Wuhan, na China, e agora está sofrendo alterações importantes.
“Por que ele ficou tanto tempo, cerca de seis a oito meses, com a primeira cepa que evoluiu de Wuhan e agora tem mais mutações aparecendo, todas na região da spike? Muito provavelmente porque os vírus sofrem mais mutações para escapar de anticorpos neutralizantes, geralmente dirigidos para a porção viral que se liga às nossas células. Agora, como vai ser essa evolução, a gente não sabe”, acrescenta.
Vacina
Então, com essas mutações, o que esperar das vacinas já aprovadas e em uso? Os dois especialistas destacam que ainda são necessários testes para entender o que vai ocorrer daqui para frente.
“A eficácia da vacina depende do endpoint. Se o seu endpoint é hospitalização e óbito, o que já saiu até agora é que aparentemente as vacinas atuais dão conta”, ressalta Bellei. Por outro lado, conforme a infectologista da Unifesp, alguns estudos observaram que “a atividade in vitro de anticorpos neutralizantes foi menor” com a variante sul-africana.
Ainda assim, esse não deve ser o principal aspecto considerado.
“Claro que a gente quer evitar a doença, mas no fim do túnel o que a gente quer é evitar hospitalização e óbito. E quanto mais a gente evitar óbito, mais próximo da vida normal a gente vai estar”, acrescenta.
Uma pesquisa conduzida por especialistas britânicos e brasileiros e divulgada na última segunda-feira (1º) pelo “Financial Times” mostrou que a variante P.1 “é entre 1.4 e 2.2 vezes mais transmissível que outras que circulam no Brasil”.
Além disso, o estudo, feito em parceria pela USP, pela Universidade de Oxford e pelo Imperial College de Londres, apontou que a variante brasileira “foi capaz de escapar de 25-61% da imunidade protetora induzida por uma infecção anterior”.
Segundo os pesquisadores, isso pode ser um sinal de que as vacinas atualmente utilizadas podem ser menos eficazes contra a P.1. Os responsáveis pelo estudo, que aguarda revisão por pares e publicação em revista científica, ainda pedem averiguações “urgentes” para checar a eficácia dos imunizantes.
Apesar de terem “certeza de que a P.1 alterou as características epidemiológicas do vírus em Manaus”, eles ressaltam que “não há evidências de que a variante não vai responder às vacinas”.
Ainda no campo da hipótese, como as vacinas usam métodos de produção diferentes, também pode haver respostas distintas.
Algumas delas, como a CoronaVac, usam o vírus inativado inteiro; outras, como a de Oxford ou a Sputnik V, utilizam parte do Sars-CoV-2; já as da Pfizer e Moderna usam a nova tecnologia de RNA mensageiro.
“Se a gente tem apenas uma proteína S e o vírus tem mutações nessa região, a tendência é ter uma perda de eficácia. Agora, se você tem o vírus inteiro, claro que você tem a proteína S, onde teria uma perda de eficácia, mas você tem outras proteínas que geram anticorpos também. Então você poderia suplementar os problemas com a proteína S, mas a gente não tem esse dado ainda”, explica Levi.
O especialista acrescenta que, em países como Reino Unido e Brasil, “está rolando um grande experimento a céu aberto” porque a vacinação acontece simultaneamente à disseminação das variantes. “Agora a gente vai ter de olhar no campo o que está acontecendo: se a pessoa que tomou a vacina tem Covid, a gente vai ter que sequenciar e ver se é a P.1. Então seria um sinal que a P1 está escapando da vacina”, salienta.
Sobre a criação de imunizantes específicos contra variantes, projetos já anunciados pelo laboratório italiano Takis e pela francesa Sanofi, tanto Bellei como Levi não creem na necessidade de algo assim neste momento.
“Eu acho que a gente precisa de mais dados de vigilância, até para saber se a cepa brasileira não vai evoluir. Mais do que ter pressa em produzir e distribuir uma vacina, a gente tem de ter um entendimento do quanto as cepas brasileiras estão se modificando e da eficácia de uma vacina com uma cepa diferente em relação a outra. Porque se a eficácia for até certo ponto próxima, ou razoavelmente aceitável, porque vou fazer outra vacina que não tem uma eficácia aceitável?”, questiona Bellei.
Levi segue um caminho semelhante e acrescenta que os laboratórios que ainda não lançaram seus imunizantes já podem levar em consideração as novas mutações. “Eu não diria que a gente vai ver uma vacina assim específica contra a P.1. A gente mantém a original e acrescenta, parecido com as vacinas que são assim atualmente e protegem contra diferentes linhagens de pneumococos, de HPV, sendo polivalentes”, finaliza.
Fonte: Ansa
Foto: Trnava University/Unsplash