As palavras têm essas virtudes: são mutantes e surpreendentes. Difícil aprisionar uma palavra. Segundo o dicionário, significam uma ou muitas coisas, mas, quando usadas, disparam novos sentidos. Surpreendem.
Por conta disso lembrei-me de meu pai. Sem ser um conhecedor da língua inglesa, ele implicava com o que julgava ser uma confusão norte-americana própria de imperialistas. Uma mesma palavra, dizia ele, escrita do mesmo jeito, mas pronunciada de outra maneira, significa coisas diferentes. E dava lá uns exemplos dos quais já não me lembro. Fazia isso se divertindo. E eu me divertia com as brincadeiras dele.
Até que um dia ele saiu apressado dizendo que precisava levar uma camisa ao alfaiate para uma reforma. Naquele tempo as roupas eram levadas aos alfaiates para reformas. Golas puídas eram viradas do outro lado, mangas frouxas eram encurtadas, remendos eram feitos aqui e ali, sobretudo quando o ali era o cotovelo. Valia a pena. A roupa voltava nova e era usada por mais alguns anos.
Hoje, é claro, não se reforma roupa. É mais fácil comprar outra e, problema adicional, já não se encontra quem saiba reformar uma camisa com refinamentos de artesão. Os alfaiates desapareceram pelo que sei. No tempo de meu pai, eles eram eficientes e tinham convicções anarquistas. Havia uma inexplicável leva de alfaiates anarquistas no mundo e no Brasil, o que não agradava a meu pai, embora lhes admirasse a habilidade com tesouras e agulhas. Implicava com o fato de que, sendo anarquistas, queriam revolução e não reformas, o que somava outro significado.
Mas o problema é que, ao ouvir a palavra reforma dita por meu pai, me ocorreu que seu Durval, um vizinho aposentado e resmungão, era conhecido como “militar reformado”. Eu o observava a cuidar do jardim e pensava: não foi muito bem reformado esse seu Durval. Meio curvado, uma perna presa e outra solta, o que fazia com que mancasse. Além do mau humor.
Pois aprendi então que os militares, com a idade, eram reformados. Continuavam do mesmo jeito, infelizmente, mas reformados.
Mas havia ainda outro imbróglio.
Morávamos em Blumenau, cidade germânica, cheia de presbiterianos. Desde pequeno convivi com presbiterianos sem qualquer problema. Pareciam com o seu Durval pelo ar casmurro e dureza de caráter, mas eram competentes e sérios. Bastava.
Mas eis o problema que fui descobrir mais adiante: resultavam de uma reforma. Ou melhor, Reforma. Quem nos explicou isso em detalhes foi o professor Mosimann, de História – aliás, um professor admirável, uma espécie de São Francisco de Assis que aturava e contornava com sábia delicadeza as estripulias dos alunos, que eram, eu inclusive, umas pestes.
Pois a reforma protestante empreendida a partir das 95 teses de Martinho Lutero, um monge franciscano exigente e reto como todo alemão convicto, desencadeou uma Reforma. E lá estávamos nós vivendo essa mistura saudável de religiões sem sectarismo.
Então, minha cabeça de menino ficava assim: havia reforma, reforma e Reforma. Das roupas, dos militares idosos e da religião. Sem falar da reforma que era diferente da revolução. O que colocava uma interrogação nas teorias brincalhonas de meu pai, que gostava de fazer piada com tudo, menos com religião. Não acreditava em nenhuma, mas achava que era preciso respeitar a todas elas.
E eu acreditava no quê? Até hoje não sei. A Reforma de Lutero me parecia fazer sentido, pois a ideia de se insurgir contra poderes constituídos já me parecia muito atraente. A reforma dos militares fazia sentido; estava na hora de colocar os milicos velhinhos num pijama, ainda que continuassem os mesmos. Quanto aos limites entre reforma e revolução o tempo se encarregaria de dissolver. Já a reforma das roupas eu achava desconfortável. Parecia meio triste reformá-las, uma confissão de que não se tinha dinheiro para comprar roupas novas.
Mas a verdade é que não tínhamos dinheiro para certos gastos e naquele tempo o consumismo ainda não havia tragado todos os nossos cuidados com a simplicidade franciscana do professor Mosimann.
Éramos mais modestos, digamos. Mas as palavras eram seres vivos, mutantes, e se prestavam a usos os mais diversos. Foi o que aprendi naquele momento. Mais adiante fui descobrir que era por isso que possuíam muita beleza e uma riqueza sem fim.
Roberto Gomes, escritor
Publicado no Aeroporto Jornal – março/2016