A perda de potência em voo de ambos os motores é um evento extremamente raro na aviação comercial.

Ao longo de meus doze anos de voo, nunca experimentei, sequer, a falha de um único motor. Quem dirá os dois.

Entretanto, existem precedentes.

Em quase todos esses eventos, as ocorrências estavam associadas a famosa pena seca (falta de combustível) ou colisão com pássaros.

Um dos raros casos de pane seca envolvendo um voo comercial ocorreu em 23 de julho de 1983, durante o voo doméstico 143 da Air Canada, ligando as cidades de Montreal e Edmonton, com uma escala em Ottawa.

Mas não fique preocupado: essa história teve um final feliz. Como assim, final feliz? Um avião não cai se perder a potência de seus motores?

Isso é exatamente o que muita gente acha, mas a realidade é um bem diferente. Um avião não irá cair simplesmente porque perdeu a potência de seus motores.

Se ele estiver com velocidade suficiente no momento da falha dos motores, ele irá para planar, independentemente do tamanho do avião.

A título de curiosidade, os enormes Space Shuttle (ônibus espacial), da Nasa, que operaram entre 1981 e 2011, executavam seu procedimento de descida do espaço até o pouso com os motores desligados, apenas planando, da mesma forma como faz um pequeno planador.

Evidentemente que para manter a velocidade o avião precisa, necessariamente, iniciar uma descida.

No caso em questão, o Boeing 767 da Air Canada estava a 41 mil pés de altitude (aproximadamente 12,5 mil metros de altura), voando a 850 km/hora, quando ambos os motores adormeceram.

Primeiro, acendeu o alerta de baixa quantidade de combustível no tanque esquerdo.

Minutos depois, acendeu um segundo alerta: desta vez, a baixa quantidade aparece no tanque do lado direito.

Na sequência, o motor do lado esquerdo parou de funcionar.

Logo após, foi a vez do motor direito deixar de funcionar!

Ambos por falta de combustível.

Uau, que situação complicada e inusitada: um imenso Boeing 767 fazendo um voo comercial, de repente, perde a potência de seus dois motores.

Se perder a potência de apenas um dos motores, nada irá acontecer. Aviões bimotores, como o Boeing 737, Airbus A320, Embraer 190 etc, são planejados para voar, em total segurança, com apenas um motor funcionando.

Para manter uma aeronave voando mas sem os motores funcionando, o piloto precisa, fazer o avião descer a fim de manter a sustentação, ou seja, permitir que o avião tenha uma velocidade mínima que o permita planar.

Então, voltando ao voo 143 da Air Canada.

Assim que os motores pararam de funcionar, os pilotos declaram emergência ao controle de tráfego aéreo e informaram o motivo da emergência.

O controlador sugeriu que eles tentassem pousar em Winnipeg.

Via de regra, um avião a 40 mil pés tem em torno de 25 minutos de voo planado (sem a necessidade de potência dos motores) até o pouso.

Entretanto, durante a descida, os pilotos do voo 143 concluíram que não conseguiriam chegar até Winnipeg.

O copiloto Maurice Quintal lembrou, então, de uma pista de pouso situada numa antiga base aérea militar em que ele tinha trabalhado nos seus tempos de piloto militar e que poderia servir como alternativa à Winnipeg.

A base já estava desativada havia anos, mas a pista deveria continuar lá, pensou ele.

Sem outra opção, eles viraram o Boeing 767 um pouco à direita e seguiram direto para Gimli, onde ficava a antiga base militar.

Próximo ao pouso, era hora de baixar o trem de pouso. Isso seria uma operação de rotina se pelo menos um dos motores estivesse funcionando.

Como não era o caso, pois os dois motores estavam parados, eles teriam que comandar o abaixamento do trem de pouso por um modo alternado:  comandar manualmente, através de uma alavanca, o abaixamento do trem de pouso, que, neste procedimento, ocorreria por ajuda da gravidade.

Entretanto, o trem de pouso do nariz, que fica na frente do avião, não abaixou.

Como já estavam próximos ao pouso e com os motores apagados, não havia a opção de iniciar um procedimento de arremetida. Para os pilotos do Boeing 767

não restava mais nada a fazer senão pousar o avião na pista de pouso sem o trem do nariz baixado.

Ao avistarem o que deveria ser a “pista de pouso”, nova surpresa para os pilotos: eles descobriram, então, que a antiga pista da base aérea havia se tornado uma pista de corridas de arrancada.

Não havia mais nada a ser feito senão a de se concentrar ao máximo para fazer o melhor possível: pousar o Boeing 767 no único lugar disponível naquele momento: uma pista de corridas de arrancada!

Segundos depois, o comandante Robert Pearson pousou com total segurança o Boeing 767. Não houve nenhuma vítima fatal. Dez passageiros se machucaram com pouca gravidade durante o procedimento de evacuação da aeronave.

Por fim, você deve estar se perguntando: como pôde um avião comercial, fazendo um voo regular ficar sem combustível? Isso, de fato, é muito estranho.

A investigação matou a charada ao analisar a documentação do abastecimento.

Por um erro inacreditável de interpretação de unidades de medida, o avião foi abastecido com 22 mil libras de combustível.

Todavia, o comandante havia solicitado 22 mil quilos. Quilos e libras representam valores completamente diferentes. 1 libra é igual a 0,45 quilo.

Devido ao equívoco no abastecimento, o avião decolou para seu voo com metade do combustível necessário.

Então, essa foi a história com final feliz do pouso de um Boeing 767 com ambos os motores apagados, que ficou mundialmente conhecida como Gimli Glider (O planador de Gimli).

Como curiosidade, em seu próximo voo, repare o som dos motores do avião quando ele inicia a descida para pouso.

Como todo avião comercial faz sua descia com os motores em marcha lenta, a fim de economizar combustível, é possível perceber, pela repentina diminuição do ruído dos motores, o exato momento em que a potência sai do regime de cruzeiro e entra no regime de descida.

Os aviões a jato, independentemente de seu tamanho, fazem toda sua descida sem o uso de potência dos motores, apenas planando, exatamente como os planadores.

Claro que, próximo ao pouso, terão que aplicar a potência novamente, assim que estenderem os flaps e abaixarem o trem de pouso, pois ambos criam muito arrasto e, para compensar esse arrasto, se faz necessário levar as manetes (acelerador do avião) para frente a fim de aumentar a potência dos motores. E isso você também poderá perceber pelo aumento do som dos motores.

Bom voo e até a próxima história.

Sady Bordin tem 58 anos e trabalhou como piloto de linha aérea por doze anos, sendo cinco como comandante de Embraer 190/195 na Azul Linhas Aéreas. Tem mais de 7 mil horas de voo e atualmente é instrutor de solo e de simulador de voo na EPA Training Center. sady@embraer195.com.br

 

 

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