Como ela seria?

Olho em volta como se pudesse encontrar algo que me ajudasse a imaginar como ela seria. Bobagem. Fantasia. Não há como saber. Não há nada a saber.

Apesar disso, resolvo fazer umas contas, eu que sou péssimo com números e com cálculos e com datas e endereços – quer dizer, com quase tudo.

Gasto um bom tempo procurando lembrar como tudo aconteceu e onde eu estava. Não preciso de muito esforço. Jamais esqueci. O quarto, a janela ao lado, o dia que acompanhei desde o início da madrugada. Meu filho estava comigo e nós dois esperávamos. Quietos, sem trocar palavra. Ele saia do quarto dele, vinha pelo corredor, chegava à janela do meu quarto onde eu fazia de conta que lia um livro. Logo ele retornava a seu quarto, inquieto. Eu seguia de cara no livro, sem ler.

Foi nesse dia, data não consigo precisar. Mas creio que ela teria agora uns 27 ou 28 anos. Digamos que seja vinte e oito – os números pares me parecem sempre mais simpáticos.

Ela tem 28 anos. Já terá feito alguma faculdade, quem sabe fale inglês com fluência e, como todos os de sua geração, pense em estudar nos EUA. Tem namorados, como convém. Uns vão, outros vêm. Eu me divirto trocando de propósito o nome deles.

Não, tudo isso é clichê.

Ela seria uma bela jovem mulher de 28 anos, teria cabelos claros como os do irmão, e seria agitada, eis aí. Agitada, falante, metida. Adoro mulheres jovens e metidas, donas de seus narizes. E seu rosto seria muito bonito. Muitas vezes eu ficaria olhando para ela disfarçadamente em busca de traços de seu irmão, seus tios, avós, mas não encontraria nada disso. Por alguma razão que não entendo, ela seria diferente de todos, ou melhor, uma mistura inédita que dissolveria todas as semelhanças embora fosse capaz de lembrar todas elas.

Vou até a janela, como meu filho foi naquele dia distante, e acho que estou delirando. Melhor parar com isso. Aliás, essas lembranças começaram, sem que eu percebesse, quando rabiscava um rosto de mulher num pequeno pedaço de papel. Ao perceber isso, sou tomado por uma urgência de rever o desenho. Era um pequeno papel de recados, desenhei no verso casualmente enquanto não pensava em coisa alguma e apenas esperava que alguém atendesse ao telefone.

Reviro meus papéis, abro e fecho cadernos de anotações. Mas cadê o papel? Por quase meia hora me debato pela casa para afinal encontrá-lo caído prosaicamente junto ao pé da mesa.

Acontece que o desenho não me diz nada. O rosto que ali está é demasiado sério e com certeza não é o de uma jovem mulher de 28 anos. Não sei por que me lembrou de… Como se chamaria? Não consigo lembrar, o nome já estava escolhido, mas sumiu de minha memória.

Largo o papel sobre a mesa e digo a mim mesmo que preciso tomar um café. Preciso acordar dessas fantasias. Afinal, ela não existe e nunca existiu. Ou terá existido? Claro, existiu por uns meses.

A verdade é que poderia ter sido uma moça muito carinhosa, talvez tivesse paciência com minhas manias, compreendesse meus tormentos, quem sabe fosse ao cinema comigo. Quando, distraído, eu saísse de casa sem pentear os cabelos ou com os botões da camisa abertos, chamaria minha atenção.

Antes disso teria sido uma menina sapeca e faladeira. Uma pequena alma cheia de alegria.

Afinal veio o telefonema que esperávamos desde a madrugada. Foi breve e definitivo. Fui à janela, onde meu filho me aguardava imóvel, olhos perdidos no ar. Eu o abracei e não foi preciso trocarmos qualquer palavra.

Por isso não está hoje conosco essa bela jovem mulher de 28 anos, dona de seu nariz, linda, cabelos alvoroçantes, atrevida, capaz de me dar um abraço, de pular no meu pescoço e quase me estrangular com sua furiosa euforia.

Lembro: se chamaria Ana Carolina.

Fica vivendo em algum universo paralelo fabricado pela minha memória – é lá que costumo depositar o que poderia ter sido, mas que não foi. O que me permite pensar nessa filha que não tive e em minha história para sempre incompleta.

Roberto Gomes, escritor

http://www.gomesroberto.blogspot.com

Publicado no Aeroporto Jornal – maio/2016
Foto: Mike Kotsch/ Unsplash

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