Acompanhado de um chá de frutas vermelhas, Miguel Krigsner, a pessoa que numa rua marginal da Curitiba no final dos anos 1970 abriu uma pequena loja e a transformou num império – O Boticário – que, hoje, envolve mais de um milhão de pessoas, não dá nenhum sinal de ostentação ou vaidade, o que não é de se esperar de um dos homens mais ricos do Brasil. Não fez restrições a perguntas, nem impôs limites. Falou do seu negócio, da sua vida e, também, do medo da morte que teve no início do ano passado.  

Now Boarding – Por que seus pais foram para a Bolívia?

Miguel Krigsner – Meus pais eram sobreviventes da II Guerra Mundial. Minha mãe era alemã, então ela saiu da Alemanha pouco antes de 1939 quando começou a guerra. A família da minha mãe saiu principalmente por perseguições que começaram na Alemanha…

NB – Na Alemanha mesmo?

MK – De Breslau, cidade que hoje pertence à Polônia. Ela e a família foram para a Itália, onde ficaram um tempo. Minha mãe era a filha caçula. Duas irmãs foram para Israel e minha mãe foi para La Paz quando tinha 12 anos porque a Bolívia era um dos pouquíssimos países, à época, que aceitava refugiados. Era mais fácil. Argentina permitia; outros países não permitiam…

NB – E o Brasil?

MK – Estava fechado para judeus… Na verdade, ninguém falava que estava proibido, mas para conseguir uma visa, um passaporte, era uma dificuldade enorme e em outros países tinha um custo elevadíssimo… Agora, meu pai era polonês e teve cerca de 25 membros da família dele que morreram no Holocausto…

NB – Em campos de concentração?

MK – Fuzilados alguns, acho que três primos foram para campos de concentração, e a família sumia. Ninguém sabia exatamente o que que acontecia. Os campos de concentração foram descobertos depois da guerra. Mas meu pai ficou durante a II Guerra numa localidade no interior da Polônia e um amigo cristão dele o escondeu num celeiro, um depósito. Meu pai, três para quatro anos escondido ali com mais um irmão e só saiam à noite para arejar, fazer as necessidades. Só deixavam eles saírem à noite. Meu pai saiu com 38 quilos desse lugar. E havia um temor. Porque na época quem escondia pessoas de religião judaica não tinha perdão, eliminando famílias polonesas inteiras. Só que ele ainda ficou um tempo na Europa até 1946/47, daí conseguir ir para a Bolívia porque tinha uma irmã dele que morava lá, porque ela foi antes da guerra. Foi pra lá… Quando a gente fala de empreendedores hoje, puxa, eu fico pensando…

NB – Chegou a estudar em La Paz?

MK – Estudei basicamente o primário, na Escola Americana.

NB – Daí o senhor veio com 11 anos para Curitiba. Por que a opção por Curitiba?

MK – Porque aqui morava a tia Sonia que tinha vindo uns anos antes e quando você vai para um país novo, você tenta localizar os parentes. E a gente, na realidade saiu de La Paz porque minha mãe tinha um problema cardíaco e La Paz é a capital mais alta do mundo, então ela tinha que se mudar. Viemos de avião em três escalas: Corumbá, Presidente Prudente e São Paulo, depois Curitiba.

NB – O senhor completou os estudos, formou-se na Universidade Federal do Paraná em Farmácia e Bioquímica e pediu um empréstimo de US$ 3 mil para um tio seu, qual tio?

MK – Tio Wolf.

NB – O seu pai não tinha dinheiro para emprestar a você?

MK – Até teria, mas meu pai queria que eu fizesse Medicina, porque na época o cara ou era médico ou engenheiro, e ele queria a todo custo que eu cursasse Medicina, eu tinha que ser doutor, que na época era quase um semideus. E para decepção dele passei em Farmácia. Até tentei alguns vestibulares para Medicina, mas não tinha vontade de passar. E assim que me formei, meu pai falava “agora você pega os pontos que você conseguiu e vamos tentar fazer você entrar na Faculdade de Medicina”. E eu não queria.

NB – Mas o senhor tinha alguma aptidão para Farmácia e Bioquímica ou foi por exclusão?

MK – Eu queria alguma coisa na área das Ciências Biológicas porque eu sempre gostei de misturar coisas. Desde muito jovem… não sei por que você está puxando essas memórias… rs… Lembra que tinha aqueles tubinhos de filme de fotografias de 35mm? Ali a gente aprendia a fazer três componentes químicos… a gente abria um furinho nesse tubinho e aquilo explodia…

NB – Então fazia também fio químico?

MK – Sim, fio químico… rs (NR: era um barbantinho que, queimado em sala de aula, fedia muito e todos tinham que sair da sala)

NB – Tinha alguma em Curitiba na época?

MK – Tinha a Farmácia Colombo, que tinha um laboratório atrás. Talvez tivesse uma na Av. Kennedy. Só que a Colombo na área de dermatologia não manipulava. Na hora que vi isso, me programei para fazer estágios e vou montar uma farmácia pequena. Realmente não tinha dinheiro para montar. Aí, vou procurar um local, na Rua XV não dava, daí achei uma loja na R. Saldanha Marinho que era uma boca desgraçada…

NB – E o estranho é que fica duas quadras acima da XV. É gozado essa geografia das cidades…

MK – O ponto chique da cidade era a XV e duas quadras para cima era o submundo. Achei um lugar que tinha pegado fogo, que o Ivo Hauer era o dono do prédio e ele tinha reconstruído. E, para quem eu falava que iria montar uma farmácia na Saldanha Marinho, eles perguntavam: “Mas quem que vai na Saldanha Marinho?”. Eu estava cercado de hotéis de alta rotatividade. Mas era o único lugar que dava, que estava perto do centro. E montei. Meu tio emprestou US$ 3 mil que eu hoje não sei quanto seria.

A primeira loja, na R. Saldanha Marinho

NB – A farmácia fazia manipulação dermatológica, mas já tinha alguma coisa pensando em perfumaria?

MK – Eram mais cremes, principalmente. Curitiba tinha uns dez ou doze dermatologistas. Era pouca gente e eu criei um tipo de apostila com fórmulas prontas para os médicos, porque o médico não sabia, à época, formular. Eram raros. Mas na área de dermatologia você tinha que orientar. Essas apostilas estão guardadas em algum lugar aqui. E daí eu entregava para os médicos. “Olha aqui o senhor tem algumas sugestões”, porque eu ia com muita cautela, mas daí o médico olhava e mandava algumas receitinhas.

NB – Era uma Curitiba de quase 700 mil habitantes.

MK – E eu recebi oito, dez receitas por dia. Então eu pensei “esse negócio não vai dar para sobreviver”. Aí eu comecei a procurar algumas alternativas que eu poderia fazer na farmácia sem ferir a ética do dermatologista. Comecei a estudar nas muitas horas vagas e acabei criando alguns cremes que se tornaram realmente ícones, como creme de algas marinhas, shampoo de algas, cremes à base de colágeno, de elastina para mulheres grávidas, emulsões cremosas. E desde o começo, até pelo fato de ter formulado para dermatologista eu disse “vou colocar nesses produtos a concentração necessária para que a pessoa sinta um efeito e as matérias primas da melhor qualidade possível”. Porque, se eu queria fazer alguma coisa diferente, a única maneira seria oferecer produtos de altíssima qualidade.

NB – O que levou ao sucesso foi o boca a boca.

MK – É. E hoje ao devo ao sexo feminino tudo o que eu tenho. “Porque, sabe, tem um creminho lá na Saldanha Marinho, mas não espalha para ninguém, tá! Vai lá. Eles vendem em potes de 30 gramas. Experimente”. Até que comecei a receber senhoras que queriam meus cremes de colágeno. A partir daí a coisa começou a proliferar.

NB – O que o senhor usava na época?

MK – Tinha Paco Rabanne, Vitesse, algumas marcas da Argentina que vinham para o Brasil. Mas daí surgiu a oportunidade de ter um contato com uma empresa do Sílvio Santos que queria fazer na área cosmética para concorrer com a Natura, Avon e a Christian Grey. Então ele montou uma empresa, mandou fazer desenhos, embalagens, só que ele teve que mudar a estratégia…

NB – Porque ele ganhou a concessão de canal de televisão.

MK – Exatamente. Ele tinha um barracão cheio de embalagens que ele precisava se livrar rapidamente porque precisava montar um estúdio. Ali que conheci a nossa ânfora da Acqua Fresca…

NB – A Acqua Fresca foi o primeiro?

MK – Foi.

NB – E foi um sucesso, né?

MK – Foi de cara.

NB – Até hoje é a mesma fórmula?

MK – Tem a antiga e agora a gente tem uma Acqua Fresca New. Só que ela tinha uma característica legal que era a refrescância e a fixação. Normalmente as fragrâncias mais refrescantes não grudam muito na pele, em 3, 4 horas evapora aquilo. E ela tinha esse lado bem particular. Lembro que falei “me dá uns cinco quilos disso”. Como eu comprava em pequena quantidade, eu pagava o olho da cara. Só que foi muito interessante isso porque como eles colocavam um multiplicador muito grande no preço, eles tinham que colocar matéria-prima muito boa. Porque você sente quando uma fragrância tem mais qualidade. Daí acabei comprando um monte de fragrâncias deles e formando uma linha completa, vendendo inicialmente na Saldanha. Aí que entra o Aeroporto na minha vida…

NB – As pessoas montavam um kit na loja da Saldanha e entregavam como presentes, lembranças para pessoas que moravam fora de Curitiba…

MK – Eu fazia umas cestas de vime… Em Santa Felicidade tinha uns italianos… aí a gente pegava a cestinha de vime, colocava uns negócios dentro, fazia estojo, e vendia. Mas voltando à loja do Aeroporto. Vencemos uma licitação e contratei o Alberto Celli que era um arquiteto muito bom na época… Sabe o quê? Não vamos fazer só aquelas lojinhas que tem um vidro na frente, vamos fazer um projeto bem legal. E realmente ficou linda a loja. Tinha um negócio de cortiça, tinha vidros, era maravilhosa a loja. E coloquei meus perfuminhos lá para vender. E assim começou…

NB – Com um detalhe: você é quem trabalhava domingo nessa loja.

MK – Eu tinha uma vendedora, que era a Célia, que me ajudou demais. Tenho uma lembrança muito boa dela. Só que o marido dela era um dos gerentes do aeroporto… E ela era uma mulher linda, linda… e o cara volta e meia passava lá para vê-la… rs… E disse que ela domingo não iria para a loja, domingo é da família e eu, putz, e agora… Estou com meus domingos vagos mesmo, não estava nem namorando na época. “Vou ficar na loja!”. E lá fui eu. Lembro que tinha uma lanchonete do Aguillar Silva, onde eu sempre comia um sanduíche e um suco natural e ficava os domingos lá fazendo minha pesquisa de mercado, né…

A atual loja no Aeroporto Internacional Afonso Pena

NB – A loja do Aeroporto é que alavancou tudo.

MK – Foi importantíssima porque nessa loja, na realidade, começaram a aparecer os primeiros executivos, franqueados, executivos que trabalhavam em Curitiba e iam no final de semana para casa, muitos deles… E o cara, às vezes o aeroporto estava fechado, o cara ficava circulando, entrava na loja para ver o que é que é, daí eu descobri que geralmente em aeroporto a pessoa está com certo sentimento de culpa, ou está indo ver a namorada, ou está voltando para a esposa, tem que levar um presentinho… e ali a gente começou a ver que seria uma fonte interessante. E como o aeroporto fechava demais; tinha época a manhã inteira, ou à tarde… e as comissárias também circulavam nos corredores e entravam para conversar. E aos poucos eu comecei a perceber que elas compravam sacolas de produtos. “Por que que ela está levando cinco, seis frascos?” Descobri que elas iam para suas cidades ou elas vendiam ou presenteavam. E aquilo começou a proliferar. Porque daí eu comecei a receber encomendas… a Varig tinha um sistema de reembolso na época. Então, você conseguia mandar com a Varig, por reembolso, depois de sessenta dias eles te retornavam o dinheiro, ficavam com “x”… permitiam vender por reembolso postal, porque as pessoas iam na cidade, pagavam na Varig e eles me pagavam. Aquilo foi num crescente. Cada vez vinha mais.

NB – Vamos falar de viagens. Do seu lazer. Se você fosse recomendar uma viagem, qual destino seria?

MK – Um dos lugares mais lindos que conheci é a Ilhas Maldivas que fica no Oceano Índico, bem embaixo da Índia, são várias ilhas. E está acabando porque a água volta e meia está subindo. É um local lindo. Lua de mel é, com certeza, lá.

NB – Mas é um passeio caro.

MK – Sim, é caro. Mas eu fiz isso depois de muito tempo.

NB – E uma segunda opção?

MK – Eu acho que a Terra Santa é legal. É mobilizadora para todas as religiões. Na hora que você chega em Jerusalém, você tem uma energia ali basicamente de cinco, dez mil anos de história, e muita coisa está preservada. Então você sente. Tem até uns shows que mostram antes da idade de Cristo. Você está pisando em muita história.

NB – Praia ou neve?

MK – Praia. Até eu gosto de neve, mas nunca fui adepto de esportes, aliás, nem de praia, nem de neve. Mais praia.

NB – Um restaurante.

MK – Em Curitiba o La Varenne (NR: Fica no Shopping Pátio Batel), o Barolo Trattoria, o Badida em termos de carne, o Las Tablas, que é muito bom.

NB – Qual o restaurante de fora que faria o senhor fazer uma viagem?

MK – Talvez nos Estados Unidos, o Daniel, em Nova Iorque, mas sabe que não tenho muito esse negócio de gastronomia. Como hambúrguer com toda tranquilidade. Antigamente gostava de espetinho, mas hoje não dá porque você não sabe a procedência. Nossa, quantas vezes eu jantei no Au-Au, e volta e meia ainda dou uma fugida no Au-Au.

NB – Um hotel?

MK – Tem um hotel lindo na Turquia, que fica no mar do Bósforo, o Çiragan Palace Kempinski Istanbul. (kempinski.com/en/istanbul/ciragan-palace/)

NB – O Museu do Holocausto é um passeio imperdível em Curitiba?

MK – É.

NB – Por quê?

MK – Na verdade é um Museu que mostra um aspecto, claro, do Holocausto como uma das coisas principais, mas da violência do homem até onde pode chegar, onde o Holocausto na realidade é uma peça importante, mas a gente faz uma demonstração de todos os grandes genocídios, os grandes crimes que foram feitos e que continuam sendo feitos pela humanidade. Tem um lado que mexe pessoalmente, mas você conta a história de pessoas. A gente resgatou muita coisa. Por exemplo, tem um violino. Tem a história desse violino, a quem pertenceu, tem a história de uma boneca, de um sapato, a gente consegue personificar essa questão da violência nas pessoas, não é um número. No Holocausto falam que morreram mais de seis milhões de pessoas. O que importa ali é a Ester que era a dona daquela boneca e o que aconteceu com ela. E na hora que você consegue personificar esse tipo de coisa, você se dá conta que os números são importantes, mas a gente não é número. Eu aconselho a visita. O Museu é totalmente apolítico e mostra os aspectos da maldade humana.

Publicado na Now Boarding – março/2019

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