Neste artigo, o comandante Sady Bordin mostra que a MEL é fundamental para todo voo poder decolar.

Para que uma aeronave consiga transportar centenas de passageiros, vencendo grandes distâncias a 850 km/h, não bastam motores potentes e asas enormes.

Inúmeros sistemas, do elétrico ao hidráulico, passando pela pressurização da cabine de passageiros (o que permite a manutenção da vida a 40 mil pés de altitude, poucos mais de 12 km, onde o ar é  rarefeito), do ar-condicionado (que permite manter uma temperatura agradável de 22⁰C, mesmo com a temperatura externa a 60⁰C negativos), armazenamento e distribuição de mais de 100 toneladas de combustível (o que possibilita voos de mais de 18 horas de duração – Cingapura a Nova York), trem de pouso (projetados para suportar o peso de 575 toneladas – Airbus A380 como o da foto abaixo), freios (imagina frear um tricíclo a 250 km/h), controles de voo, instrumentos dos motores, sistemas de navegação, automatismo (que permite ao avião pousar sem interferência dos pilotos), luzes, alarmes visuais e sonoros, proteção contra chuva e gelo, oxigênio reserva para pilotos e centenas de passageiros, dentre outros, permitem que esta maravilha da engenharia moderna te leve de São Paulo e Paris de forma segura e confortável.

Além desta enorme variedade e complexidade de sistemas, existe ainda uma série de redundâncias de sistemas (Pitot 1 e 2, GPS 1 e 2 etc), bombas (elétricas 1 e 2, hidráulicas 1 e 2 etc), instrumentos (praticamente o avião tem 2 paineis idênticos e independentes), tudo pensado para assegurar o mais alto nível de confiabilidade, despachabilidade e, claro, segurança de voo.

Caso um sistema inteiro ou apenas um item deixe de funcionar, o sistema ou item reserva entra automaticamente em operação e o voo prossegue normalmente.

Mas, como o piloto irá saber de cabeça se ele pode decolar com um item inoperante?

Na verdade não tem como ele saber de cabeça, pois são centenas de itens. Para isso, pilotos consultam a famosa MEL – Minimum Equipment List (Lista Mínima de Equipamentos), que é basicamente um manual que contém todos os sistemas, instrumentos e equipamentos que, mesmo estando inoperantes, permitem aos pilotos prosseguirem com o voo.

Vamos imaginar que durante o taxiamento de um Embraer 190 para decolagem de um hipotético voo de Curitiba para Guarulhos, os pilotos do “Sul123” se deparem com uma indicação de que um dos geradores (Engine Driven Generator) deixou de funcionar.

Os aviões com dois motores (Boeing 737, Airbus A320, Embraer 190 etc) tem 2 geradores, cada um conectado a um dos motores do avião. O IDG 1 fica no motor 1, do lado esquerdo, e o IDG 2, no motor 2, do lado direito.

Surge, então, a dúvida: os pilotos podem decolar com um dos geradores inoperantes?

Para responder a esta pergunta, vamos ver o que diz a MEL para este item.

Lendo e, principalmente, interpretando corretamente a MEL sobre este item, fica fácil para os pilotos decidirem, pois, baseados na MEL eles estarão amparados tanto técnica como legalmente para fazer o voo.

Vamos, então, interpretar esse item.

A primeira coluna está descrito o item e o modelo da aeronave. Veja que é bem específico, ou seja: serve apenas para as aeronaves E-Jet (170/175/190/195) e sua versão para aviação executiva, o Lineage 1000.

Na segunda coluna, temos a letra A. Esta coluna trata do intervalo máximo de tempo em que esse item pode permanecer inoperante. Neste caso, de acordo com a alínea “d” da quinta coluna, 2 dias. Ou seja: este avião pode voar com este item inoperante por apenas 2 dias. A terceira coluna mostra o número de itens instalados no avião. Neste caso, o avião tem 2 geradores.

Na quarta coluna temos o número mínimo necessário para podermos operar o avião com segurança. Neste caso, é necessário apenas um gerador, desde que respeitado as exigências operacionais da última coluna.

E quais são estas exigências?

Desde que o voo não seja de grande extensão (ER), que não é o caso, pois o “Sul123” irá de Curitiba para Guarulhos e, ainda, observado os seguintes critérios:

  1. Que o gerador elétrico do APU (aquele que fica na cauda do avião) esteja operacional e que fique ligado durante todo o voo.
  2. Que o IDG esteja desconectado (isso pode ser feito através de um botão localizado no Overhead Panel – Painel superior) e na posição Off – Desligado.
  3. Que o voo seja conduzido no máximo a 33 mil pés de altitude.
  4. Finalmente, que o voo seja feito no máximo em 2 dias.

Atendidas todas as exigências, os pilotos do “Sul123” podem prosseguir com segurança seu voo com destino a Guarulhos, mesmo sem um dos geradores funcionando.

SAIBA MAIS: Afinal, quem pilota o avião?

O gerador remanescente dá conta do recado e o gerador do APU será o back-up do sistema, caso o único gerador operando deixe de funcionar.

Agora, imagine que você é o piloto que fará o voo “Sul122” e ao chegar na aeronave descobre que ambos limpadores do para-brisa (Windshield wiper) estão inoperantes.

Então, você pode fazer o voo?

Aqui está a MEL para te ajudar na decisão:

A resposta é: depende!

Você pode decolar sem nenhum limpador funcionando (quarta coluna – 0), desde que:

(a) não esteja chovendo num raio de 5 milhas (cerca de 8 km) no aeroporto de decolagem e num raio de 5 milhas no aeroporto de destino e,

(b) que este item não seja necessário para a realização do voo.

Então, se você estiver voando num lindo dia de sol, sem nenhuma nuvem na origem e destino do voo e, caso a previsão seja de tempo bom no horário previsto de pouso no destino, bora voar!

A correta interpretação da MEL é fundamental para os pilotos tomarem uma decisão acertada a fim de evitar, desnecessariamente, o cancelamento de um voo.

Todavia, mesmo com a MEL permitindo que o piloto realize o voo, cabe sempre, ao comandante, a decisão final de fazer o voo.

Em uma ocasião, numa das empresas em que trabalhei como copiloto, chegamos ao avião para assumir um voo de São Paulo para Manaus, coisa de 3h30 meia pelo menos. Ou seja: um voo longo.

Entretanto, o piloto automático estava inoperante. Apesar da MEL permitir o voo com o AP inoperante (ver abaixo)

O comandante optou por refugar o avião, ou seja: não aceitou fazer aquele voo com o piloto automático inoperante. Ele alegou que, caso houvesse uma pane durante o voo, a carga de trabalho dos pilotos seria muito alta com a ausência do AP. Além do fato de ser cansativo, tem o fator de fazer um voo de mais de 3 horas à moda antiga, ou seja: na mão!

Bom voo e até o próximo encontro.

Sady Bordin tem 58 anos.  Trabalhou como piloto de linha aérea por 12 anos, sendo 5 como comandante de Embraer 190/195 na Azul Linhas Aéreas. Tem mais de 7 mil horas de voo.  É instrutor de simulador na EPA Training Center. sady@embraer195.com.br

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