Que 2020 foi um marco na história da humanidade moderna, ninguém duvida. Um ano em que o planeta precisou parar bruscamente sua rotina por conta de um vírus invisível e se adaptar a um maior isolamento e a novas regras de convivência. Mas como será o chamado “novo normal” que viveremos nos próximos anos quando os momentos mais críticos da pandemia passarem? Para o professor do Departamento de Sociologia do Observatório da Inovação da Universidade de São Paulo (USP), Glauco Arbix, esse primeiro momento será bastante diferente.
“Acho que vamos ter de conviver com uma situação de incerteza como a gente nunca teve. A incerteza vai exigir uma série de atitudes, desde institucionais, de governo, até supranacionais e individuais. Nós vamos ter mudanças – e rápidas – que certamente vão perdurar por muito tempo, porque é muita ingenuidade acreditar que a vacina resolve o problema dessa pandemia”, diz o especialista em entrevista à agência Ansa.
Para Arbix, a crise sanitária da Covid-19 colocou “questões que formam um panorama de incertezas muito grande para o ambiente, para a poluição, para a alteração da saúde”. “Foram dezenas e dezenas de alertas dados sobre a possibilidade de um novo risco. Aqui no Brasil mesmo, dada a maneira desregrada com que a gente trata nossa floresta, tudo isso nos aproxima da natureza de uma maneira não adequada, e por isso que o vírus pula para nós”, pontua.
Um dos principais pontos positivos que ocorreram em 2020 e que deve permanecer para o futuro é a grande troca de informações científicas de maneira completa e rápida – o que permitiu o desenvolvimento em tempo recorde de vacinas contra a Covid-19.
“Não só na forma de buscar conhecimento, mas nas formas como os processos mudaram. Veja, estamos fazendo uma coisa que era impensável há cinco ou seis anos, que é chegar, em menos de um ano, a ter duas ou três vacinas com possibilidades reais de serem eficazes. Isso, do ponto de vista da ciência, é um feito, é histórico. Você tem novas ferramentas, novos instrumentos científicos e tecnológicos e, fundamentalmente, o mais importante e que tem um peso enorme foi a troca rápida de conhecimento no mundo todo”, acrescenta Arbix.
Já para Elaine Marcial, coordenadora do Grupo de Pesquisa e Estudos Prospectivos da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, além dos investimentos e dos avanços na ciência, outra questão que a pandemia trouxe é o fato de que o mundo se deu conta, especialmente nos países mais desenvolvidos, de que não se pode deixar a produção de determinados itens essenciais na mão de um só fornecedor.
“A China se transformou no principal fornecedor do mundo, de tudo. Em áreas estratégicas, você não pode ficar na mão de um fornecedor, e a saúde é uma área crítica. Se você lembra, no início da pandemia não tinha máscara, não tinha EPIs de maneira geral. Já existem pesquisadores que falam que essas ondas podem voltar a ocorrer. E aí? Você vai ficar parado?”, questiona Marcial em entrevista à Ansa.
Sociedade
Para a pesquisadora, algumas das mudanças mais significativas do futuro serão sentidas na questão do emprego e do desenvolvimento da sociedade.
“Uma das grandes mudanças que vamos ter é com relação ao ambiente de trabalho. Acredito que o trabalho remoto veio para ficar, não na proporção que está hoje, mas acredito que muitas organizações vão ampliar a quantidade de pessoas em trabalho remoto muito por conta da redução de custos. Isso acaba trazendo outros impactos na sociedade, por exemplo, você vai ter menos pessoas circulando, então você pode reduzir o número de carros em circulação, o que tem um impacto na poluição”, ressalta.
Outro ponto levantado é que a pandemia acabou acelerando o investimento em automação e nas tecnologias de informação e comunicação (TICs), e “isso não tem volta”. “Investimento em automação e TIC pode fazer com que, na ‘nova normalidade’, você não recupere, na sua totalidade, o número de empregos que foram fechados durante esse processo mais intenso da pandemia. É o que a gente chama de desemprego estrutural”, destaca.
Sobre os comportamentos sociais, a coordenadora diz ainda que duas coisas a fazem refletir sobre o longo prazo: a pirâmide etária e a natalidade, visto o que já aconteceu com a humanidade em outros momentos críticos da história moderna.
“Tenho alguns questionamentos sobre como vai ficar nossa pirâmide etária porque como é tudo muito recente, você não sabe como vão ser as consequências dessa doença. Até a Covid, nós vivemos um momento de aumento da expectativa de vida. A Covid vai deixar sequelas suficientes no organismo das pessoas para reduzir a expectativa de vida? Essa é uma pergunta ainda sem resposta. A ciência ainda não sabe porque ainda não teve tempo”, reflete.
Marcial ainda lembra que o mundo sempre “experimentou aumentos da taxa de fecundidade” após eventos com grandes quantidades de mortes, como guerras e epidemias. “Mas a nossa sociedade hoje é diferente da sociedade do passado, e aí fica a pergunta: vai haver um aumento da taxa de fecundidade ou não? Porque hoje ela está em queda”, diz.
Trazendo a questão para o Brasil, a especialista ainda pontua que o déficit educacional vivenciado aqui deve ter sequelas bastante duradouras. Isso porque a maior parte dos estudantes acabou ficando sem aulas presenciais desde março, com as escolas utilizando o ensino a distância como padrão.
“Nós já tínhamos um problema educacional no país e, na minha visão, isso vai se agravar em função da perda de um ano. Essa perda não é só de conteúdo, mas também cognitiva, porque eles perdem as relações, principalmente as crianças, porque isso já foi verificado após grandes guerras. Os mais novos precisam dessas relações”, finaliza.
Fonte: Ansa
Foto: EPA/Bilawal Arbab